Sabe aquela sensação de perceber que outra pessoa está te olhando sem querer que você perceba? Aquele olhar que indaga e quer penetrar esse limite que permeia o pessoal, o interior, o “teu segredo”? Às vezes sinto que alguns autores agem desse modo. Chegando perto e falando ao ouvido. Acontece também com músicas. As que te pegam repetindo alguma frase que tem tudo a ver contigo ou nada a ver mas gostaríamos que tivesse.
Histórias narradas em primeira pessoa, reais ou imaginárias, tem esse poder de falar de um modo bem pessoal e íntimo, como conversando descontraidamente num café, bar, na areia, na beira da piscina. Chorando junto, rindo, nos surpreendendo com o outro ou com nós mesmos. Virginia Woolf, Roberto Bolaño, Piglia, Dostoyevsky, Murakami, Valter Hugo, Chimamanda, García Márquez, Cortázar…a lista de “amigos” é longa. Talvez esse contar dos outros é o que gostaríamos de dizer mas não encontramos as palavras. Quiçá essa parte da história é difícil de organizar e relatar com um começo, um meio e um fim. Quando um artista consegue fazer você sentir um toque, cheiro e todas as sensações que uma boa obra é capaz de transmitir, ai sim somos capturados para esse buraco negro, o olho do furacão que é a vida.
É noite. Chove lá fora e Meg está sentada ao lado da janela, vendo os relâmpagos e a chuva cair. Imagem bonita, não? O que será que ela pensa? Virginia Woolf escreveu um livro em primeira pessoa sobre o seu Cocker Spaniel chamado Flush. Michail Bulgakov escreveu o maravilhoso Heart of a Dog contando as peripécias de um cão humanizado. Essa contemplação da natureza e seu entorno é tão intensa nos animais. Parece que eles enxergam além da chuva, ouvem mais os trovões, se interessam mais pelas sutilezas desse mundo vasto que embelezam. Precisamos crescer muito para chegar a esse nível. E eu? Lendo Dias de Abandono, da Elena Ferrante e me fazendo todas essas perguntas anteriores. Fiquei me perguntando como será seu processo de criação. Escreve uma frase de uma vez só? Como organiza esses pensamentos na sua cabeça?
Conheço Ferrante pelas histórias da Lenu e Lila, personagens principais de A Amiga Genial. Gostei muito de entrar na vida dessas duas meninas italianas que contavam como era crescer em Napoli nos anos 50. A paisagem, as famílias, as roupas penduradas, os gritos das mães dizendo “comida pronta!!!!” me transportaram à minha infância, que mesmo desse lado do planeta, foi tão parecida!
Dias de Abandono além de ser uma história feminina (território muito bem conhecido por Elena Ferrante), é uma história de homens, de crianças, de cães, de juventude, de velhice, de mágoas guardadas e culpas atribuídas a outros pelo simples fato de ser mais fácil assim. Contada em primeira pessoa parece ainda mais pessoal e real. É como se a Olga, a personagem principal, estivesse desabafando comigo, me fazendo parte dos seus mais íntimos pensamentos à velocidade máxima (streams of consciousness que Virginia Wool, James Joyce, Marcel Proust faziam tão bem). Olga não tem medo de nada…cospe tudo, do jeito que vem para dentro e para fora…palavrão, soco, comentários cruéis, realidades da vida que antes não ousava se permitir pensar e muito menos fazer. Essa autodestruição que chega após a quebra, o abandono, o divórcio, em forma de furacão até destruir tudo o que poderia trazer memórias de um tempo que foi bom.
Li uma vez algo que o Nietzsche tinha escrito em Assim Falou Zaratustra: “Você tem que estar preparado para queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?” Foi mais ou menos isso o que Olga fez. Ela se queimou, e queimou bonito! O resultado, apesar de ter carregado consigo nesse incêndio os filhos, o marido e a atual mulher e até o vizinho, foi de tirar o chapéu. Ela conseguiu ressurgir do próprio inferno e com força máxima. O marido, que foi o estopim desse incêndio todo, talvez nem percebeu a fumaça…ele estava bem ocupado vivendo a sua nova vida com uma mulher mais jovem.
Foto: Turim, Itália