O filho de mil pais e de mil mães

A sensação de acabar um livro e de sentir na pele como todas e cada uma das letras penetra nos poros, como a alimentar-se de ar, de coisas boas, de felicidade, de novas possibilidades, é o verdadeiro elixir.  Nirvana literário que nos torna mais humanos.  E com humanos quero dizer em todos os sentidos! Mais humanos de amor, de fraquezas, de poderes, de inteligência, de belezas e feiúras.  É como se a través da leitura de um bom livro, possamos redimir todos esses seres humanos que de uma maneira ou outra nos fazem sentir vergonha do humano alheio.  Há muitas coisas ruins nesse extenso mundo.  Mas também há tantas coisas belas! Eu sempre prefiro navegar pelo belo.  Acredito que seja um jeito mais relaxado de ver a vida, uma maneira de ter compaixão comigo e com a humanidade.

Poderia enumerar muitos livros que me fizeram melhor pessoa, mas o livro em questão é O filho de mil homens, uma obra sensível e crua do angolano naturalizado portugués Valter Hugo Mãe.  Várias histórias que vão se costurando como uma colcha de retalhos, pedaços que vão se juntando e formando um todo incrível.  Assim como a vida mesma.  Não é assim que nós nos tornamos o que somos? Um pedaço daqui, outro pedacinho de acolá, voltamos para o começo, seguimos enfrente, reforçamos alguns pontos e assim vamos.

O filho de mil homens é uma história de buscas, de homens e mulheres pela metade, do preconceito que faz alguns perder o amor com que vieram ao mundo, de diferenças, de puerilidade, de familia, de inocência.  Presente do amigo Márcio Carneiro, a deliciosamente linda edição da Biblioteca Azul não poderia chegar em melhor momento! Verão, sol, férias, amigos, lugares explorados, passeios de barco e trilhas desbravadas.  O livro é um verdadeiro mergulho para dentro de si, como trilhar lugares para dentro do corpo.

 

O Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do caminho.  Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera.  Crianças que viviam como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela vida.  Acreditou que o afecto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença.  A grande forma de familia.

 

Para entreter curiosidade, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de queu ler seria fundamental para a saúde.  Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer.  Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva.  E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente.  O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça.  Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas.  O caixão fechava-se como um livro.

 

O silvo entrava pelo entreaberto da janela que o velho Alfredo teria deixado assim para respirar.  Encostado à parede, como sentado a ver o escuro, já não diria mais nada.  Não parecia aflito, não tombara.  Segurava-se dignamente sentado, como se tivesse deixado a alma a puxar ainda os cordéis do corpo feito marionete.  Talvez a janela estivesse aberto porque a alma solta já não lhe coubesse numa casa tão pequena.  Talvez não lhe coubesse o amor, agora que fora do corpo se estendia pela infinitude dos sentimentos à procura da mulher.  O Camilo escutando sempre o silvo, noite inteira, acreditou que a sua intensidade era a junção da voz do velho Alfredo à da Carminda.  Julgou que lhe diziam que estavam por ali.  O rapaz, que ficara de boca cheia com os seus nomes e os dizia para si mesmo, jurando a memória, deixou mesmamente a janela entreaberta.  Pensou que, por uma noite, estariam bem assim as coisas, assim como o avô as preparara.  Aconchegou-se com duas mantas no velho sofá e não dormiu.  Partilhou como pôde o momento da morte com o avô, o seu único familiar, a única pessoa que efectivamente lhe pertencera até então.  No escuro, apenas com um impreciso luar criando sombras e definindo os contornos dos objetos maiores, o Camilo percebeu que a casa cedia.  Talvez o avô não tivesse lido um bom livro, talvez não tivesse lido nada, preocupado que estava com cuidar do neto e motivá-lo.  O Camilo estendeu a mão à pequena mesa ao pé do sofá e agarrou o livro que ali estava.  No escuro seria impossível reconhecer as palavras.  Lembrou-se, no entanto, de o haver pousado ali.  Lembrou-se do título, do autor, lembrou-se do que lhe dissera o avô: este cura-te um cancro.  Gostaria de acreditar que pudesse curar a morte.  O livro, mesmo no escuro e mesmo assim fechado, fez-lhe companhia.

 

Quando se conhece alguém, pensou Crisóstomo, procuram-se as exuberancias dos gestos, como para fazer exuberar o amor, mas o amor é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conducir ao sossego.  O gesto exuberante é um gesto desesperado de quem não está em equilibrio.

 

O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor.  O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai.  O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és.

 

Naquele dia, a Isaura foi sentar-se e pôr flores na campa da Maria.  Não rezaría, mas pensou em como haviam vivido as duas perdidas uma da outra e em como talvez fosse fácil ter sido tudo melhor.  Parecia fácil agora corrigir cada erro do pasado, sobretudo para não permitir que cada erro contagiasse o resto, destruindo cada instante e cada gesto sem retorno.

 

Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro.  Apenas isso.  Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é.

 

O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo.  Como se os nossos mil país e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros.  Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão pasando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós.

vhm

O filho de mil homens

Valter Hugo Mãe fazendo o que melhor sabe fazer: criando sentimentos, criando sensações.

O silvo entrava pelo entreaberto da janela que o velho Alfredo teria deixado assim para respirar.  Encostado à parede, como sentado a ver o escuro, já não diria mais nada.  Não parecia aflito, não tombara.  Segurava-se dignamente sentado, como se tivesse deixado a alma a puxar ainda os cordéis do corpo feito marionete.  Talvez a janela estivesse aberto porque a alma solta já não lhe coubesse numa casa tão pequena.  Talvez não lhe coubesse o amor, agora que fora do corpo se estendia pela infinitude dos sentimentos à procura da mulher.  O Camilo escutando sempre o silvo, noite inteira, acreditou que a sua intensidade era a junção da voz do velho Alfredo à da Carminda.  Julgou que lhe diziam que estavam por ali.  O rapaz, que ficara de boca cheia com os seus nomes e os dizia para si mesmo, jurando a memória, deixou mesmamente a janela entreaberta.  Pensou que, por uma noite, estariam bem assim as coisas, assim como o avô as preparara.  Aconchegou-se com duas mantas no velho sofá e não dormiu.  Partilhou como pôde o momento da morte com o avô, o seu único familiar, a única pessoa que efectivamente lhe pertencera até então.  No escuro, apenas com um impreciso luar criando sombras e definindo os contornos dos objetos maiores, o Camilo percebeu que a casa cedia.  Talvez o avô não tivesse lido um bom livro, talvez não tivesse lido nada, preocupado que estava com cuidar do neto e motivá-lo.  O Camilo estendeu a mão à pequena mesa ao pé do sofá e agarrou o livro que ali estava.  No escuro seria impossível reconhecer as palavras.  Lembrou-se, no entanto, de o haver pousado ali.  Lembrou-se do título, do autor, lembrou-se do que lhe dissera o avô: este cura-te um cancro.  Gostaria de acreditar que pudesse curar a morte.  O livro, mesmo no escuro e mesmo assim fechado, fez-lhe companhia.