O Peso do Pássaro Morto

One Art

By Elizabeth Bishop

The art of losing isn’t hard to master;

so many things seem filled with the intent

to be lost that their loss is no disaster.

 

Lose something every day. Accept the fluster

of lost door keys, the hour badly spent.

The art of losing isn’t hard to master.

 

Then practice losing farther, losing faster:

places, and names, and where it was you meant

to travel. None of these will bring disaster.

 

I lost my mother’s watch. And look! my last, or

next-to-last, of three loved houses went.

The art of losing isn’t hard to master.

 

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,

some realms I owned, two rivers, a continent.

I miss them, but it wasn’t a disaster.

 

Como começar a escrever sobre uma história cuja estrutura narrativa não começa com “Era uma vez…”?  Uma história que começa aos oito e não no nascer da vida? Ou será que a vida pode nascer aos oito? E não é que tem uns que nunca nascem e outros que nunca morrem?  Aline Bei, Aline Bei, não faz isso comigo.  Ou faz, por que não? Nesse mundo era-uma-vez, onde as pessoas são condicionadas a seguir uma estrutura linear, um “timeline” cronológico para entender mais facilmente a existência que se perfila como fácil, a literatura nos oferece uma miríade de possibilidades de contar uma história e ajudar-nos no entendimento dela.  Histórias de melancolia, de alegrias, de perdas, de ganhos, de conquistas, de derrotas.  Kafka, Vonnegut, Woolf, Mãe, Murakami, Shakespeare, Machado de Assis, só para citar alguns que quebraram e quebram essa linha do tempo.  Eu sou amante dessas estruturas quebradas, de começos pelo fim ou fim pelo começo; esse tornar a história da vida mais real e menos pasteurizada.

O Peso do Pássaro Morto, da Aline Bei, quebra essa estrutura, dividindo os capítulos em idades que vão dos oito aos 52 anos, todos com uma linha delicada que conduz a perda.  Um tema recorrente na humanidade desde todos os tempos, e que, hoje faz-se mais presente com as redes sociais, que nos jogam as verdades e as mentiras na cara.  A cada idade (8, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50 e 52), a perspectiva de vida diferente e a oportunidade de crescer e amadurecer junto com a personagem (sem nome) fizeram com que eu entrasse no livro em primeira pessoa e assumisse a história de maneira pessoal, pois a voz dela se fundia com a minha.

“perguntei pra minha mãe:

-o que é morrer?

ela estava fritando bife pro almoço.

-o bife

é morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que

                farão com a sua carne.

quando estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos.

mas tentamos. 

almoçamos a morte e foi calado.”

O efeito gráfico usado parece que dá mais sentido a essa vida contada em letras minúsculas, com linhas que continuam títulos, cursivas, parágrafos cortados, palavras divididas, parêntesis vazios, pontos de exclamação separados das frases e margens…muitas margens para recobrar o fôlego.  É prosa ou é poesia? A leveza das palavras seguidas de timbres mais ásperos dá uma sensação de coisa boa.  Tanto faz o gênero.  A história da Bei se conta como a vida mesma.  Às vezes poesia, outras prosa, depois tragédia e assim vai.

Apesar das muitas perdas que a personagem principal de “O Peso do Pássaro Morto” sofre, ela não deixa morrer a esperança que existe no seu coração.  Sem a esperança, o que mais resta?  Justamente, é esse paradoxo entre o céu e o inferno, o que transforma a trama em algo comum, de uma pessoa comum vivendo uma vida comum.  No entanto, a forma é o que a converte em uma obra deliciosamente diferente.  O constante chegar ao fundo do poço para voltar para cima resgatar o ar, olhar o céu e dizer ainda não.  Ainda não me leve desse mundo injusto, mas belo.  Não me tire a beleza da vida que, apesar de injusta, é a que me faz feliz ou simplesmente existir.

Lendo “O Peso do Pássaro Morto” perdi, ganhei, fui violentada, fui presenteada, sofri, mas vivi.  Vivi a vida dessa menina-moça-mulher forte, guerreira, frágil e amorosa que a existência tratou sem piedade.  Mas ela fez o que pôde para que não passasse despercebida e, assim, pudesse deixar a sua assinatura nessa terra cruel que pisamos.

Ah, mas deve ser um livro difícil de ler, com tanta dor.  Não!  É curto, com apenas 161 páginas de texto fluido, leve e infinitamente poético.  Oh, quanta poesia! Por vezes, me pegava declamando, ou chorando ou rindo alto.

“-é um menino. – o medico disse

e colocou o bebê

no meu colo.

eu estava chorando

de cansaço,

olhei praquela criança

também chorosa, ela que

não fazia ideia

do que é no mundo nascer um menino,

alguém precisa contar.

não da parte física, claro,

isso ele vai descobrir sozinho

e muito rápido,

alguém precisa contar da outra parte, doutor,

as mulheres abusadas nas trincheiras e

nos viadutos

não estão nos livros de história.

os ditadores sim

todos em itens

numa longa biografia.

olho pro meu Filho,

ele está

quente,

magro demais.

a enfermeira pega ele de volta

todo mundo está sorrindo

e eu precisando contar

pro menino

tanta coisa,

a maioria

triste.”

Não é de surpreender que o livro ganhasse o Prêmio São Paulo de Literatura, de 2018, na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos.  Temas fundamentais na vida, como a maternidade, o estupro, relação mãe-filha, filhos indesejados, depressão pós-parto, gravidez precoce, abandono paterno, maltrato animal, amor animal, violência contra a mulher, autoconhecimento e alguns outros, fazem desse romance estreante uma voz contemporânea que vale muito ser ouvida.  Ou lida.

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Detalhe da foto: Óleo sobre tela. Flores, 2016. Por: Abuelita, incursionando no universo pictórico pela primeira vez aos seus 97 anos!

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