O filho de mil homens

Valter Hugo Mãe fazendo o que melhor sabe fazer: criando sentimentos, criando sensações.

O silvo entrava pelo entreaberto da janela que o velho Alfredo teria deixado assim para respirar.  Encostado à parede, como sentado a ver o escuro, já não diria mais nada.  Não parecia aflito, não tombara.  Segurava-se dignamente sentado, como se tivesse deixado a alma a puxar ainda os cordéis do corpo feito marionete.  Talvez a janela estivesse aberto porque a alma solta já não lhe coubesse numa casa tão pequena.  Talvez não lhe coubesse o amor, agora que fora do corpo se estendia pela infinitude dos sentimentos à procura da mulher.  O Camilo escutando sempre o silvo, noite inteira, acreditou que a sua intensidade era a junção da voz do velho Alfredo à da Carminda.  Julgou que lhe diziam que estavam por ali.  O rapaz, que ficara de boca cheia com os seus nomes e os dizia para si mesmo, jurando a memória, deixou mesmamente a janela entreaberta.  Pensou que, por uma noite, estariam bem assim as coisas, assim como o avô as preparara.  Aconchegou-se com duas mantas no velho sofá e não dormiu.  Partilhou como pôde o momento da morte com o avô, o seu único familiar, a única pessoa que efectivamente lhe pertencera até então.  No escuro, apenas com um impreciso luar criando sombras e definindo os contornos dos objetos maiores, o Camilo percebeu que a casa cedia.  Talvez o avô não tivesse lido um bom livro, talvez não tivesse lido nada, preocupado que estava com cuidar do neto e motivá-lo.  O Camilo estendeu a mão à pequena mesa ao pé do sofá e agarrou o livro que ali estava.  No escuro seria impossível reconhecer as palavras.  Lembrou-se, no entanto, de o haver pousado ali.  Lembrou-se do título, do autor, lembrou-se do que lhe dissera o avô: este cura-te um cancro.  Gostaria de acreditar que pudesse curar a morte.  O livro, mesmo no escuro e mesmo assim fechado, fez-lhe companhia.

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